Eu sabia exatamente o que precisava de fazer.
Assim, passei dias a vasculhar arquivos antigos, a organizar documentos e a atualizar o meu testamento. Escrevi cartas à minha filha e ao meu neto — cartas cheias de amor, perdão e conselhos para os anos em que não conseguiria cuidar deles. Organizei as minhas poupanças para liquidar a hipoteca dela. Criei um pequeno fundo fiduciário para o filho dela, para que ele pudesse recomeçar um dia. Não lhes contei. Eu não queria a pena deles. Eu só queria que tudo ficasse bem.
Três dias depois do incidente com o café, o som do carro dela a entrar na garagem assustou-me. Quase não abri a porta.
Estava ali parada, com os olhos vermelhos, mas frios, segurando a mala como se fosse um escudo.
« Preciso de alguns documentos do seu escritório », disse ela secamente. « Algo sobre seguros. »
Abanei a cabeça e afastei-me. Não tinha energia para discutir e, francamente, não queria.
Alguns minutos depois, ouvi gavetas a abrirem-se, papéis a serem remexidos — e depois silêncio.
Seguiu-se uma inspiração profunda.
Quando entrei, ela estava parada em frente à minha secretária, paralisada. O seu rosto empalideceu. Nas mãos trémulas, segurava uma pasta que claramente não esperava encontrar. A que tem a etiqueta « Assuntos Finais ».
No seu interior havia documentos que ela nunca veria — o meu testamento, formulários de seguro de vida, cartas dirigidas a ela e ao filho, relatórios médicos com a palavra «terminal» impressa a tinta preta.
As suas mãos tremeram enquanto abria um dos envelopes. Caiu uma fotografia — uma fotografia antiga do seu quinto aniversário, eu a segurá-la numa mão e um bolo na outra.
Ela entreabriu os lábios. « Papá… », sussurrou, com os olhos cheios de lágrimas. « Porque é que não me contou? »
Exalei lentamente, cada respiração mais pesada que a anterior. « Porque não queria a sua pena », disse baixinho. « Eu só queria ter a certeza de que estavam os dois bem. »
Ela largou a pasta e, antes que eu me pudesse mexer, atirou-se para os meus braços. O seu corpo tremia e um soluço interrompeu a sua voz.
« Desculpa-me », ela chorou. « Eu não queria… Eu não sabia… »
Abracei-a com força, sentindo o peso do seu arrependimento em cada respiração trémula. Pela primeira vez em anos, vi-a não como a adulta furiosa que tinha fugido, mas como a menina pequenina que um dia correu para os meus braços depois de ralar o joelho.
As manchas de café continuavam na parede da cozinha, pálidas e feias. A minha camisa ainda carregava a leve sombra castanha daquela manhã. Mas, de alguma forma, olhar para elas deixou de doer. Porque aquelas manchas já não eram símbolos de dor — eram lembretes de como o amor pode ser perdido facilmente e de como, milagrosamente, pode regressar.
Nessa noite, depois de ela se ir embora, sentei-me sozinho no silêncio do meu escritório. Uma pasta aberta estava em cima da mesa, as minhas cartas espalhadas pela madeira como frágeis fragmentos da minha alma. Lá fora, o vento sussurrava por entre as árvores, trazendo o cheiro da chuva.
Pela primeira vez em muito tempo, senti paz.
Ela sabia finalmente a verdade — não apenas sobre a minha doença, mas também sobre o meu amor. Que tudo o que eu já tinha feito, cada decisão a que ela chamara teimosa ou fria, brotava do desejo de a proteger.